A matéria de hoje traz um tema cada vez mais recorrente, na cena eletrônica – a saúde mental dos DJs. O caso do DJ Avicii, entre tantos outros que vemos dia após dia, reforçam a necessidade de se ter estudos, mais aprofundados, que englobem essa discussão.
Por isso, o Portal B2B achou extremamente válido dividir com vocês a pesquisa que Rafaella Cavalcante fez para sua conclusão de curso – “A saúde mental no trabalho dos DJs”.
Rafaella, graduada em psicologia, pela PUC Minas, abordou justamente esse tema que – ainda hoje – é muito delicado de ser tratado. Além de Psicóloga, Rafaella também é DJ, então vivência na pele as dificuldades existentes por quem opta por seguir a profissão.
A partir de dados concretos, entrevistas e referências diversas, é possível que comecemos a tecer um quadro mais sólido a respeito dessa realidade vivida por quem está no meio musical e, com isso, buscar possíveis soluções.
Afinal, é preciso lembrar que por trás de tracks incríveis, e projetos de DJs que amamos, existe um ser humano. Trazer um lado mais humano, para a profissão, é essencial!
Confira a seguir como foi a conversa com Rafaella Cavalcante:
Rafaella Cavalcante – “A saúde mental no trabalho dos DJs”
PORTAL B2B: Ei Rafaella! Conta um pouquinho de você para a gente! Como você escolheu ser psicóloga, DJ, e como é conciliar essas duas profissões tão distintas.
RAFAELLA: Ei Anna, tudo bem? Eu me tornei DJ um ano depois de ir morar junto com meu atual noivo que já era DJ/produtor na época. Eu era modelo, fazia trabalhos diversos com fotografia e eventos. Fui percebendo ao longo do tempo, como artista, que a cena eletrônica estava carente de um olhar mais cuidadoso, principalmente sobre questões diversas que aparecem como gatilho – em um festival por exemplo, onde o uso de psicoativos é mais intenso.
É um ambiente de libertação, livre de julgamentos, por que não levar a psicologia mais perto dessas pessoas?
Em minha experiência de 8 anos como DJ, eu vi muitos amigos sofrerem de ansiedade, depressão, pânico. Eu presenciei um amigo ficar ansioso, para tocar no meio da pandemia, e consegui ajudá-lo aplicando a psicologia naquele momento. Também presenciei, em minha carreira, outros artistas que nem conseguiram se apresentar, porque usaram drogas antes e não tinham condições de subir no palco.
Na verdade, cada passo que eu dava nessa direção de olhar esses artistas com mais empatia me trouxe até aqui neste momento!
Não foi fácil tentar conciliar as duas áreas nesse período, eu abri mão de muita coisa. Quando iniciei a faculdade eu tinha aula de segunda a sábado, com isso, precisei abrir mão de tocar nas sextas.
Minha vontade de ajudar a classe era maior que tudo. Então, aos poucos, fui diminuindo as gigs, as viagens, festas e comecei a me dedicar – quase exclusivamente – ao meu desenvolvimento na Psicologia.
Atualmente, consigo aplicar à minha clínica as demandas que surgem em função da profissão, já que vivenciar as duas áreas me permitiu ter uma visão ampla e muito rica sobre o saber que abrange cada realidade. Foi ai que consegui unir as duas coisas – e realização de um sonho!
Quero continuar tocando também. O que a vida tem me ensinado é que somos multi – não precisamos nos limitar a ser/fazer apenas uma coisa toda a vida.
PORTAL B2B: E como surgiu a ideia de fazer o TCC sobre esse assunto?
RAFAELLA: Eu já tinha a ideia de unir esses dois universos desde que entrei na PUC, mas ainda era tudo muito abstrato.
Com o passar do tempo, as coisas foram se delineando mais. Porém, foi quando o Avicii tirou a própria vida que o alerta se ascendeu no meu coração. Eu senti que tinha que estudar isso: “porque os artistas se matam? Porque os DJ’s estão indo por esse caminho? Que profissão é essa que a gente ama tanto, mas que nos consome? Em plena sociedade de consumo, como é isso dentro do meio? De que o artista se retroalimenta? E agora com a pandemia como estão as coisas?”
Essas eram minhas principais perguntas que me motivaram a pesquisar o tema.
Inclusive esta pesquisa vai virar um artigo e pretendo publica-lo para auxiliar outras pessoas. Quem for DJ e tiver o interesse em participar da pesquisa, pode entrar em contato comigo no Instagram. Todos os dados pessoais são substituídos para preservar a imagem dos mesmos, então não precisa ter medo da exposição. A ideia é encontrar os padrões, para que eu possa intervir em cima deles. A partir disso, será possível ter resultados mais efetivos nos tratamentos psicológicos e, consequentemente, nas mudanças que a cena tem demandado.
PORTAL B2B: Ao longo do processo da pesquisa, você se surpreendeu com algum dado/informação coletados?
RAFAELLA: Me surpreendi ao perceber que as inquietações de ser DJ/Artista, não se abrandam com a fama ou com o sucesso como a gente imagina – pelo contrário! A pressão só aumenta. O artista hoje é literalmente consumido pelo mercado, pelo público, pela imagem, pelo hater, pela expectativa que sempre se distancia da realidade, em muitos níveis.
Por vezes o mundo do showbiz esquece que há um ser humano ali. Condições primárias, que precisam ser respeitadas, são a saúde e a vida! E isso fica muito nítido no documentário “Avicii – True Stories”.
Ao ter acesso à aquelas imagens, e fazendo análises psicológicas das situações e falas das pessoas envolvidas no documentário – os desrespeitos, violências psíquicas – as causas psicológicas, de muitos sofrimentos dos DJs, ficaram ainda mais claras, ao meu ver.
PORTAL B2B: Na sua opinião, qual o grande desencadeador dos problemas mentais?
RAFAELLA: Acredito que, em maior parte, os problemas mentais vêm de uma alienação de si mesmo, unidos à afetos adoecidos, traumas e memórias de nossa trajetória de vida – que estão no nosso inconsciente.
Se não temos autoconhecimento, não estamos atentos ao nosso autocuidado, podemos sim ficar em estados críticos de adoecimento mental. No caso DJ respondo na próxima questão.
(…) as inquietações de ser DJ/Artista, não se abrandam com a fama ou com o sucesso como a gente imagina – pelo contrário! A pressão só aumenta. O artista hoje é literalmente consumido pelo mercado, pelo público, pela imagem, pelo hater, pela expectativa que sempre se distancia da realidade, em muitos níveis.
Portal B2B: A partir da sua pesquisa, qual você acredita ser o ponto mais crítico para quem é DJ?
RAFAELLA: A pesquisa mostrou que, o ponto mais crítico do DJ é se perder nos prazeres da profissão. Quando o artista não leva a carreira a sério, não traça um plano de carreira, não faz o mínimo da administração e logística. Ele tende a desistir ou tem muito mais dificuldade para se desenvolver, e pode nunca alcançar o estrelato sonhado. Uma saída para isso são as agências, que ajudam muito o artista a ter mais segurança para trabalhar.
Em função da falta de regulamentação, ficamos a mercê dos contratantes, e esse mercado capitalista liberal atual é muito cruel para qualquer trabalhador que venda sua força de trabalho.
Quem é DJ/Artista vende o produto de suas emoções. Como desvalorizar algo assim? Como colocar preço no que o artista entrega? Nisso o mercado colabora para os adoecimentos e sentimento de menos valia.
Além disso, o uso de álcool e drogas também é um fator agravante, no quesito adoecimento da saúde e da profissão. O que pode fazer com que os contratantes deixem de chamar certos artistas é justamente seu comportamento na festa.
O DJ ascendeu como artista, e isso o coloca em um lugar idealizado pelos fãs e pelas pessoas do meio, desumanizando o sujeito. Colocando-o como um “Deus”, um modelo e, assim, tira desse profissional o direito de errar. O que é injusto, afinal, somos todos humanos. Essa exigência de perfeição é, no mínimo, um fenômeno delirante que surgiu com as redes sociais e a supervalorização da imagem, em detrimento do conteúdo.
PORTAL B2B: Nas suas vivências, como DJ em BH, você já passou por experiências que abalaram sua saúde mental? Ou viu algum amigo passar por situações assim?
RAFAELLA: Nessa vida de DJ a gente passa por muita coisa! Aqui em BH eu fui muito bem recebida por alguns núcleos, em função de já ter construído um certo “nome” no estado que eu morava antes, no ES. Mas já fiquei sem receber, já tive que gastar meu cachê para consumir na festa, já tive que aceitar receber muito pouco pelo meu trabalho para não ficar sem tocar.
A desvalorização por parte dos contratantes é grande. Se você não lota uma festa, você não merece um cachê descente. Isso é cruel em todos os níveis, causa sensação de menos valia e insuficiência. Em grandes frequências, situações assim podem provocar depressão.
PORTAL B2B: Para você, como DJ e mulher, qual a maior dificuldade vivida na cena eletrônica?
RAFAELLA: Quando comecei lá no ES, eu ouvia coisas do tipo: “Seu marido que grava seus sets? Você monta playlist pronta para tocar?” Argumentos de desqualificação.
Houve uma vez que eu era a última DJ da noite a tocar numa boate renomada na capital, e o DJ que saiu cutucou um amigo e disse: “Vou ligar esse efeito só para ver se ela vai saber desligar…e riu!” Óbvio que eu sabia utilizar o equipamento! Percebi tudo e antes de entrar para tocar, deixei o equipamento todo regulado na minha forma de tocar.
Bryan me ensinou muito bem a arte da discotecagem, eu sempre fui boa de ritmo, já fui dançarina e já toquei em banda marcial. Eu tinha técnica, mas era mais fácil eles desacreditarem de mim. Já ouvi coisas horríveis de homens bêbados que nem valem a pena citar. Infelizmente, precisamos lidar com diversas situações assim, para sustentar nosso desejo e nosso espaço numa cena majoritariamente masculina que, além disso, tenta sempre apontar nossas falhas.
Quando cheguei a BH eu não era mais tão anônima por aqui. O fato de ser casada com um DJ também fez toda diferença na minha carreira – me deu segurança e malícia, para saber lidar com o meio. Em uma sociedade machista, ter um homem ao lado faz com que as pessoas te respeitem mais e te abram mais portas. O que é uma pena, pois temos mulheres incríveis na cena!
Afinal, todos merecemos reciprocidade e igualdade nessas questões básicas. Nisso ainda temos muito a evoluir como sociedade e na cena eletrônica.
Acho que admirar mais a arte do colega, ao invés de criticar ou comparar, já seria um bom começo.
PORTAL B2B: Você acredita que estamos no caminho certo para que a profissão seja tratada de forma mais humana, especialmente aqui em Belo Horizonte? Quais possíveis soluções para o excessivo nº de problemas mentais pelos quais os DJs enfrentam?
RAFAELLA: Eu acredito que, no que depender de mim para tornar a cena aqui em BH – no Brasil, quem sabe no mundo (eu sonho alto rs) – mais acolhedora, tanto para os profissionais quanto para o público, eu farei!
Já demos andamento nisso com o projeto, feito na Aquária, que aconteceu no Mineirão em 2018, onde realizamos o acolhimento psicológico para a pista.
Penso que levar a psicologia para o evento – atrelada ao posto médico – justamente nesses momentos em que as pessoas estão abertas a viver experiências diversas (e muitas vezes sob influência de psicoativos), possa ajudar a desmistificar a psicologia. Poderia ser uma forma de quebrar resistências, fortalecer os vínculos e levar apoio, independente da demanda que surja ali. E, para isso, vou precisar muito do apoio dos núcleos e abertura para a implantação dos projetos, que tenho em mente, para nosso futuro na cena!
Para além de redução de danos, a ideia é acolher o que aparecer. Tudo com empatia e humildade, sem julgamento, colocando a dimensão humana como plano de fundo para os atendimentos, de forma a abranger muitas dimensões da cena.
PORTAL B2B: Depois de ter realizado essa pesquisa, tem alguma dica que você gostaria de compartilhar com outros DJs e colegas de profissão?
RAFAELLA: A dica para o DJ é: Busque um psicólogo que te auxilie a traçar um plano de carreira de acordo com a sua vida, sua rotina, suas necessidades e que vá te acompanhar por todo seu processo de desenvolvimento, como artista.
A pesquisa mostrou que a paixão é o que comanda o DJ, e que tudo isso leva a sublimação da profissão, que se torna um sonho. Sonhos são muito potentes, estão relacionados aos nossos desejos mais profundos. Quando sabemos, na prática, dar pequenos passos em direção a essa realização desse sonho, é possível que ele se torne real.
Mas quando vamos levando de qualquer jeito a profissão (de DJ) as frustrações são intensas e sucessivas. Consequentemente, elas podem desencadear quadros graves de adoecimento pela quebra do ideal, pela não realização e pelas dificuldades múltiplas, que essa profissão trás. É exigido persistência e um nível maior de maturidade emocional.
É também preciso estar atento à cultura da medicalização das emoções, em uma cena onde o uso das drogas é menos julgado. É possível que se caia na preferência da medicalização e de tratamentos psiquiátricos, para adormecer as dores, ao invés de optar pela psicoterapia – para aprender a lidar com elas e como se apresentam.
Remédios não curam. Eles remediam e amenizam, por vezes, a incidência dos sintomas emocionais que denunciam alguma dor psíquica, que precisa de acolhimento e tratamento adequados. Você se medica, mas o que causa os sintomas psíquicos continua lá. Por vezes, eles podem desencadear outros sintomas, como reminiscências, e podem levar a um quadro de sofrimento, conhecido atualmente como a “Doença do DJ” – Síndrome de Burnout.
Se trata do esgotamento da pessoa, em detrimento do trabalho. Toda sua paixão e desejo são drenados pela carga de trabalho, que exerce uma pressão muito intensa sobre o aparelho psíquico do sujeito. Dessa forma, quadros depressivos com pensamentos suicidas podem surgir – como foi o caso do Avicii.
O DJ costuma querer agradar a todos até que entenda que precisa ser fiel a si mesmo, ele dilui sua personalidade naquilo que ele acredita ser o que esperam dele para ser famoso, ou ter sucesso com suas músicas.
Cuidem-se primeiro, sejam autênticos antes de tudo!
O verdadeiro artista oferece-se como produto aos seus fãs, para que se fartem coletivamente dos seus desejos e sonhos. Porém ele precisa ser respeitado pelos contratantes e pelo público, numa compreensão mais profunda de ser humano. Que sejamos menos canibais psíquicos, com nossos iguais. Que tenhamos empatia. E, vale lembrar que tudo isso começa por nós mesmos, de dentro para fora!
Autoconhecimento é a chave para uma vida mais satisfatória. Está mais ligado ao ser, do que ao ter – e só podemos oferecer ao nosso público aquilo que transbordamos à nossa maneira única de sermos artistas.
Você pode entrar em contato com a Rafaella através desse link, do seu Instagram.